Um objeto que machuca mais do que qualquer arma
Existe uma lágrima escondida no seu olho, um gosto amargo que saliva entre as lembranças do que não caberá naquela mala. Mesmo assim, dobra longamente cada peça de roupa que compõe o que será seu guarda-roupas e tudo que lhe pertencerá. Engole mais uma vez a dor e segue buscando o que imagina que possa lhe ser útil enquanto preenche cada espaço, cada compartimento delicadamente e com a calma de quem na verdade não quer terminar, não quer concluir e ter de partir em direção de um mundo novo. Percebe que neste momento está sob uma encruzilhada e que, a partir deste ponto, apenas poderá contar consigo mesmo e com o que carrega na sua mala. Ao final de sua composição, analisa o que leva e o que deixou, depois de um profundo suspiro, cerra o zíper de olhos fechados, ouvindo apenas o som das presilhas e o som do silêncio que completa o quarto de vestir. Flashes de uma história são a lembrança que procura evitar e engole seco mais uma vez a vontade de chorar e quando pela alça ergue sua mala, sente o peso das suas decisões e lembra ter sido seu sonho e sua escolha partir. Deixa a casa após as despedidas sem conseguir pensar em nada, como se flutuasse num limbo sem pensamentos. Na ferrovia, sentado sobre ela, senta, espera o próximo trem e guarda na sua mala mais lágrimas que carregará para sempre no bolso da saudade.
Hoje vamos analisar um objeto, aquela caixa, sacola, aquela arma que machuca pessoas, assim como pode trazer felicidade a outras... construída com uma gama imensa de materiais, com subterfúgios inteligentes, alças, rodas, zíperes, fivelas e travas. Por vezes com segredos e cadeados que protegem os sonhos daqueles que encorajam-se a usá-la.
A MALA...
Quem aqui não teve uma triste e chorosa despedida que tinha senão, ao menos uma mala presente, acompanhando quem jamais queria despedir-se? Ou ainda, pegou a sua e recheou de expectativas antes do partir definitivo para uma mudança nas suas vidas? Colocou expectativas e esperanças neste recipiente com a ideia fixa de uma vida melhor ou ainda, encontrar-se com o seu amor? As partidas são sempre o motivo que as trazem para o cenário, estão ali sempre a compor um quadro de colisão com expectativas e desejos, estão criando sempre um novo parágrafo em uma história, fazendo correr, perder o que ficou e mostrar o novo em um passeio que por vezes não terá um caminho de retorno.
A mala e suas histórias...
Eu penso que uma mala é capaz de escrever muito mais sobre uma pessoa do que qualquer outro acessório ou pingente que possas carregar, pois lhe habilita a mudar a rotina, a vida e mesmo o seu destino, carregando sentimentos fortes e sempre deixando uma lágrima para quem o que fica para trás, seja saudade, dor pela partida, um relacionamento ou simplesmente parte da história que estás dando as costas levado por ela... a mala.
Por vezes, as malas são socadas, sem qualquer parâmetro pela pressa de uma partida, seja em um sequestro, um atraso ou simplesmente pelo desejo de tão logo fugir. Fugimos de compromissos, fugimos de nossa realidade e fugimos por medo. Fugimos quando pesa demais a nossa realidade, nos escondemos nos compartimentos de nossas malas, levando saudade, dor e amor, fugimos pela irresponsabilidade do que deixamos para trás e as vidas que ceifamos de nossa presença, fugimos por que temos que voltar, temos que levar esperança a quem nos espera.
As malas da mudança também são diversas e presentes, carregando nossos sonhos para uma expectativa de uma vida melhor, um mundo melhor e uma realidade capaz de nos fazer felizes pelo simples fato de crermos estar-mo-nos dirigindo para uma vida melhor e uma realidade diferente daquela que até então encarávamos diariamente. O peso dessa mala é imenso, pois carrega uma vida inteira de histórias, contempla o conhecimento e a desfragmentação de tudo que, até então, havia sido construído.
Quando o trabalho exige, nossas malas levam a saudade de casa, carregadas de responsabilidades e uma missão a cumprir, uma mate e desafios que carregamos para encontrar uma possibilidade de sucesso e reconhecimento.
O encontro de famílias que distanciadas um dia foram por conta de inúmeros motivos, também é proporcionado pela mala que o leva a rever aqueles que são do mesmo sangue, que tem a mesma casta e origem. Uma montanha russa de emoções entre o reencontro e a partida na visita que dura sempre um tempo inferior ao que se gostaria, ao que se precisaria para que todos os assuntos e histórias possam ser contados.
Essas malas não sabem fazer o seu trabalho pois deixam o cheiro, deixam cair lembranças, e uma presença fica entre aqueles que ficaram, um resto de saudade que me faz chorar aqueles que, como móveis e paredes, ficam com as flores, ficam como fantasma de quem uma mala levou embora. Quem fica sem a mala tropeça na história passada e vai suspirar a ressaca de acostumar-se sozinho, vai ter que criar uma nova rotina que não mais conta com que uma mala sequestrou.
Já malas da felicidade, levam-nos por viagens inesquecíveis, partem vazias para trazer histórias e imagens que ficarão para sempre nos seus bolsos, nos adesivos e nos ticket's de controle de cada aeroporto, de cada rodoviária e cada lugar que ela te levou visitar e conhecer. As malas de felicidade trazem de volta pessoas que partiram e que ao retornar, trazem aquele que um dia teve que partir e agora completa o cenário que ficara incompleto pela sua ausência.
Assim são as malas, as armas que nos defendem e nos matam, objetos que são lembrados e esquecidos, mas que, sempre que tocados, com muito mais pungência afetarão sentimentos do que são capazes de carregar.
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